Oceano em risco

Publicação aborda impacto da ocupação desordenada das praias brasileiras

O Instituto da Cultura Científica (ICC) da UFSCar tem, como missão, promover o diálogo entre o conhecimento científico e diferentes segmentos sociais e, assim, as relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade. Na concretização dessa missão e, especificamente, buscando favorecer a participação das evidências científicas no debate público sobre temas relevantes em diferentes momentos, o ICC lança a primeira edição de seus Dossiês de Cultura Científica, com o tema “Oceano em risco”, motivado pela possibilidade de votação a qualquer momento da PEC das Praias.

A PEC das Praias – como ficou conhecida a Proposta de Emenda à Constituição 03/2022 – diz respeito a propriedade e gestão do litoral brasileiro. O texto altera o regime jurídico dos chamados “terrenos de marinha”, que atualmente são bens da União. A PEC propõe a transferência de parte dessas áreas para estados, municípios, ou mesmo para ocupantes privados. As implicações são vastas e polarizadoras. Há defensores, que argumentam que a medida promoverá segurança jurídica para proprietários e investidores e impulsionará o desenvolvimento econômico. Críticos – e, dentre eles, os cientistas – alertam para sérios riscos socioambientais e, também, econômicos, que incluem a privatização de praias e restrição do acesso público, o aumento da especulação imobiliária, a ameaça a ecossistemas costeiros vitais e a comunidades tradicionais que dependem desses ambientes.

Após ter sido aprovada na Câmara dos Deputados, a PEC está em análise no Senado, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), sob relatoria do Senador Flávio Bolsonaro. “A PEC estava prevista para entrar em votação em dezembro do ano passado, quando começávamos a planejar nossos dossiês, e a equipe avaliou naquele momento que haveria na UFSCar contribuições relevantes para apoio ao debate. A partir do processo de pesquisa e planejamento que iniciamos, nosso foco foi se voltando sobretudo à dimensão da geração de resíduos pela ocupação desordenada e, dentre eles, para a poluição plástica”, situa Mariana Pezzo, Diretora do ICC.

Neste primeiro Dossiê, o tema eleito para o mesacast Conexão Federal associado foi “O Rastro e o Lastro da Poluição Plástica: da Ciência às decisões políticas sobre praias brasileiras”, gravado com participação do público no mês de abril, na sede do ICC, com a presença de debatedores das áreas de Química, Materiais, Ecologia e Oceanografia. A iniciativa foi realizada com apoio do Programa de Pós-Graduação em Química da UFSCar e com o projeto temático PLAST-AGROTOX, ambos parceiros do ICC. Participaram do mesacast dois dos pesquisadores principais do projeto temático, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp): Cassiana Montagner, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Walter Waldman, do Departamento de Física, Química e Matemática, do Campus Sorocaba da UFSCar.

 

No primeiro bloco do mesacast, Montagner e Waldman abordam a natureza da poluição plástica. O pesquisador da UFSCar fala na onipresença global do plástico e detalha as três principais fontes do dano causado: a fragmentação A micro e nanoplásticos, liberação de aditivos tóxicos e capacidade de sorver outros poluentes. Ele introduz o conceito de "transparência química", defendendo o direito do consumidor de saber a composição dos produtos. Complementando, Cassiana Montagner enfatiza a complexidade da poluição plástica, que envolve uma "miscelânea" de materiais com propriedades distintas que interagem com o ambiente. Ela destaca que grande parte do lixo plástico nos oceanos tem origem em centros urbanos, sendo transportado pelos rios devido à má gestão de resíduos, ressaltando a importância de cuidar desses cursos d'água como uma estratégia crucial de mitigação.

Avançando para os impactos ecológicos e os desafios da pesquisa, Hugo Sarmento, do Departamento de Hidrobiologia da UFSCar, traz a perspectiva oceânica. Ele conta que o oceano é o maior ecossistema do Planeta, vital para a regulação climática, produção de oxigênio e como sumidouro de carbono, e sublinha a importância das áreas costeiras como berçários de biodiversidade. Sarmento também alerta sobre a "plastisfera", colonização de partículas plásticas por microrganismos, incluindo patógenos, o que transforma o plástico em um novo veículo de transporte de doenças. Dayana Moscardi, professora visitante no Departamento de Química da UFSCar, fecha as falas iniciais abordando desafios analíticos da pesquisa. A pesquisadora detalha como os microplásticos podem sorver outros contaminantes, e trata da complexidade de estudar esses processos em laboratório para desvendar a magnitude do problema.

Hugo Sarmento e Dayana Moscardi estão também em materiais complementares ao mesacast que integram o Dossiê. Sarmento concedeu entrevista em que apresenta as principais características dos ecossistemas litorâneos e fala de sua importância e dos impactos da ação humana no ambiente, com destaque para as consequências para as mudanças climáticas. O pesquisador trata especificamente de possíveis impactos da PEC das Praias, alertando que todos perdem, inclusive quem aparentemente lucra com a exploração desses ambientes, e chamando à responsabilidade, ao afirmar: “A dinâmica dos ecossistemas muda a depender das decisões que se toma sobre eles.”.

- Confira aqui a íntegra da entrevista, publicada em texto. 

Já Dayana Moscardi fala, em vídeo, de sua pesquisa sobre contaminantes emergentes, explicando o que eles são; que impactos têm sobre o ambiente e organismos vivos, incluindo a saúde humana; como a PEC das Praias pode aumentar ainda mais essas perturbações; e o papel da Educação e da Ciência.

O ensaio “Poéticas oceânicas para vidas em terra firme”  fecha o pacote de materiais preparados para esta edição inaugural dos Dossiês, estreando também, quase sem querer, o que deve ser uma seção fixa, propondo algo apelidado de “etnografia de repositório”. Nela, Michele Fernandes Gonçalves, em tom ensaístico, compartilha seu processo de busca por termos como “oceano”, “mar” e “praia” no Repositório Institucional da UFSCar, e apresenta quatro trabalhos selecionados que, diferentemente da abordagem mais objetiva dos ecossistemas litorâneos que marca as contribuições anteriores, partem de olhares mais subjetivos e questões, em princípio, afetivas.

A tese de doutorado de Juana Maricel Sañudo Caicedo, defendida no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura (PPGLit) da UFSCar, analisa a maneira de narrar o transporte de pessoas escravizadas através do Atlântico desde o século XIX, em três romances históricos.

Do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Condição Humana (PPGECH) vêm as dissertações de mestrado de Camila Fontenele Miranda, na qual a figura das baleias navegando os oceanos é recurso narrativo para apresentação de estudo sobre gordofobia e suas intersecções com o racismo e a violência de gênero; e Luiz Henrique Franco Mendonça, sobre modos coletivos de cuidado em Saúde Mental, a partir da experiência de uma comunidade caiçara no período da pandemia.

Já o trabalho de conclusão de curso de Bruno Tavares Ventura, da graduação em Ciências Sociais, vai da praia para o centro da cidade de Santos revelar, desta vez, a tensão entre a especulação imobiliária e a resistência de populações afastadas da orla, reunidas em uma festa underground que também é ameaçada de invasão.

Para costurar essas contribuições aparentemente desconexas, a autora usa a ideia de utopia tal qual proposta por Eduardo Galeano e sugere que as palavras apresentadas nos trabalhos resenhados são “capazes de curar feridas históricas e produzir, em um oceano antropizado, um outro, mais azul e mais selvagem”. De modo análogo, a expectativa é que o Dossiê de Cultura Científica #1 – Oceano em Risco possa apoiar diferentes atores na defesa da chamada “Amazônia Azul”.