“Só com gestão participativa, uso racional dos recursos e valorização dos saberes tradicional será possível equilibrar conservação e desenvolvimento”
Os ecossistemas litorâneos estão entre os biomas mais ameaçados pela especulação imobiliária e, assim, às pressões relativas ao desenvolvimento desenfreado das cidades costeiras e orlas marítimas. Ao mesmo tempo, são os responsáveis por uma série de serviços ecossistêmicos fundamentais para a vida saudável das populações humanas e não humanas. Nesta entrevista, Hugo Sarmento, docente no Departamento de Hidrologia da UFSCar e responsável pelo Laboratório de Biodiversidade e Processos Microbianos (LBPM), fala sobre a importância e constrangimentos sofridos por esses ambientes, alertando como a chamada “PEC das Praias” (proposta de emenda constitucional que trata da transferência a particulares de terras da União no litoral) pode agravar ainda mais a situação.
- O que e quais são os principais ecossistemas litorâneos?
Ecossistemas litorâneos são as regiões naturais que ficam na fronteira entre a terra e o mar, também chamadas de “ecótonos” – um termo usado em Ecologia para descrever zonas de transição entre dois ecossistemas. Essas regiões são geralmente muito produtivas e ricas em biodiversidade e podem ter várias configurações: praias de areia, costões rochosos, estuários, manguezais etc. Todas elas têm características e organismos específicos, e alguns deles podem, inclusive, habitar regiões particulares dentro desses ambientes. Esse processo é chamado de “zonação” e consiste, por exemplo, no caso das praias, na existência de animais ou plantas que habitarão, dentro de uma estreita faixa de areia, uma parte mais úmida, outros que ficarão em um local intermediário e outros ainda que se estabelecerão apenas em porções secas.
- Qual a importância desses ecossistemas para a biodiversidade?
De maneira geral, esses locais são importantes porque abrigam organismos específicos e que, muitas vezes, só ocorrem naquele tipo de ecossistema. Também porque proporcionam a conectividade entre a costa e o mar para espécies que vivem nas águas, mas se utilizam de terra firme para se alimentar e reproduzir, e vice-versa. Ainda, porque são muito produtivos (bem mais que o alto-mar) em termos de concentração de nutrientes, o que atrai muitos animais. Além disso, de maneira específica, os manguezais, por exemplo, são fundamentais para a fixação do que é conhecido como “carbono azul” – expressão utilizada para nomear o carbono fixado pelos ecossistemas marinhos, em contraposição ao “carbono verde”, que denomina a fixação feita pelas florestas. Estudos indicam que os manguezais podem capturar e estocar até 10 vezes mais carbono por unidade de área do que florestas tropicais, especialmente devido à acumulação de carbono nos sedimentos anaeróbicos.
- Quais os principais impactos da ação humana sobre esses ecossistemas?
As áreas de manguezal são muito cobiçadas, por exemplo, para o cultivo de camarão. Isso porque a criação desses crustáceos precisa de um controle muito sensível de salinidade, o que já ocorre naturalmente ali devido à entrada de água doce dos rios e de água salgada do oceano. Todo o nordeste brasileiro sofreu e ainda sofre bastante com os impactos da aquicultura intensiva e essas áreas, uma vez desmatadas, demoram muito tempo para se regenerar. Já nas regiões de praia, o impacto se dá pelo avanço imobiliário e do turismo predatório, que além de sacrificar ambientalmente as cidades, incide socialmente sobre a mudança do modo de vida tradicional das comunidades caiçaras e de pescadores. Além disso, os empreendimentos costeiros (prédios e hotéis), os emissários de esgoto em alto-mar, a diminuição dos sedimentos advindos dos rios em razão do represamento e outros fatores também causam erosão da costa, mudança na dinâmica dos ventos e da luz que incide sobre as praias, eutrofização e contaminação das águas contíguas aos grandes centros urbanos e retração das faixas de areia.
- Esses impactos trazem quais consequências para as mudanças climáticas?
A degradação desses ambientes compromete diretamente a capacidade de mitigação das mudanças climáticas. Ao perder áreas de manguezal, por exemplo, o carbono estocado nesses ecossistemas pode ser liberado na forma de CO₂, aumentando ainda mais os níveis atmosféricos de gases do efeito estufa. A perda desses habitats também diminui a resiliência ecológica, deixando os sistemas naturais e as comunidades humanas mais vulneráveis a eventos climáticos extremos, como enchentes, ressacas e aumento do nível do mar. Isso porque eles funcionam como barreiras naturais contra tempestades, inundações e erosão, protegendo comunidades costeiras.
- Em relação à PEC das Praias, pode haver impacto ainda maior para os ecossistemas caso ela seja aprovada?
A depender de qual sistema (estuário, mangue etc.) e do estado de conservação desse local, os impactos mudam, mas, no geral, as áreas mais sensíveis e que são hotspots de biodiversidade, como é o caso dos ecossistemas litorâneos, sofrem consideravelmente mais com ações antrópicas. No caso da PEC, por exemplo, áreas “virgens”, muito preservadas, podem sofrer com construções que num primeiro momento consideraríamos “inofensivas”, como pequenos decks e trapiches, e se essas áreas forem de propriedade particular, não estarão sob responsabilidade do Estado. A fiscalização estatal, nesses casos, se torna muito mais difícil, e o acesso público à praia pode ser restrito ou eliminado. Além disso, o acesso a determinadas regiões, que hoje não é proibido, mas é muitas vezes limitado e controlado, poderá ser completamente extinto a partir do que for aprovado. A lógica da apropriação privada, historicamente, tende a excluir comunidades locais, eliminar a multifuncionalidade desses espaços e priorizar interesses econômicos em detrimento da conservação ambiental.
- O que já é possível ver desses impactos?
Podemos utilizar como exemplo algumas regiões da Itália, nas quais não se entra na praia sem pagar uma taxa e onde há a presença de muros que, muitas vezes, se estendem até o mar como maneira de limitar áreas privadas. Isso muda completamente a paisagem das regiões e causa impactos, além de ambientais, também visuais. No Brasil, as praias ainda são públicas e esse tipo de coisa, embora possa existir, ainda não é tão comum. Além disso, a especulação imobiliária, que já acontece em muitas regiões e tende a aumentar se a PEC for aprovada, também descaracteriza totalmente os ambientes e tem o potencial de destruir regiões sensíveis como os estuários, que são áreas de desova e berçário de espécies marinhas, e que têm desaparecido sob a expansão urbana. Isso afeta diretamente as cadeias alimentares, com impactos reais na pesca artesanal, na biodiversidade e no equilíbrio ecológico.
- Quando um desequilíbrio desse tipo acontece, o que isso acarreta à vida cotidiana das pessoas?
Um lugar onde se pode ver claramente esses efeitos cotidianos são os estuários. O porto de Santos é um bom exemplo. Aquela região era um imenso estuário. Ali havia desovas de espécies, inclusive de interesse econômico, como no caso do camarão. Hoje não há mais esse tipo de atividade natural. Há barcos, poluição etc. Nas praias ocorre a mesma coisa. Ou seja, a dinâmica dos ecossistemas muda a depender das decisões que se toma sobre eles. As construções, por exemplo, geralmente fazem com que um grande número de espécies que antes frequentavam aqueles locais deixem de fazê-lo. Isso impacta na pesca, no estoque das espécies etc., o que ocasiona um efeito cascata em toda a cadeia trófica e na biodiversidade, com o desaparecimento de espécies que têm funções ecológicas importantes e prestam serviços ecossistêmicos. No fim das contas, estamos perdendo serviços prestados a nós por muitas dessas espécies.
- Quais são os riscos reais que a sociedade pode esperar com a degradação dessas áreas?
Os ecossistemas se organizam em redes de interações. Se uma interação dentro dessa rede é prejudicada, por exemplo, pela extinção de uma espécie ou de um conjunto de espécies, o ecossistema como um todo é capaz de se adaptar, porém, os serviços ecossistêmicos prestados deixam de existir. E esses serviços, muitas vezes, são fundamentais não apenas para esse ecossistema, mas principalmente para nós, como é o caso de produção de oxigênio, sequestro de carbono, filtragem da água, controle da erosão. Quando esses serviços desaparecem, todos perdem, inclusive quem aparentemente lucrou com a exploração. O impacto imediato pode parecer restrito, mas em longo prazo os prejuízos se acumulam. A água fica poluída, a paisagem se deteriora, a biodiversidade desaparece – e os benefícios que essas áreas proporcionavam à sociedade deixam de existir.
- Ainda é possível reverter ou amenizar esse quadro?
Para amenizar esse problema seriam necessários muitos investimentos e uma grande vontade política. Os pilares do desenvolvimento sustentável são o social, o ambiental e o econômico, e um depende do outro. No caso de um ambiente altamente impactado, ao se perder um serviço ecossistêmico, por exemplo, perde-se o pilar ambiental, que leva consigo o econômico (ninguém mais frequentará ou investirá ali), o qual, por sua vez, carrega o social (perda de empregos, por exemplo). A propriedade privada geralmente não consegue garantir esses pilares. Por isso, em um primeiro momento, ela pode parecer uma boa solução para os gestores das cidades praianas, porque eles não mais terão de gerir aqueles espaços – e sabemos que a gestão de espaços públicos é muito complexa, pois precisa equilibrar interesses. Porém, em longo prazo, no caso da propriedade privada dessas regiões litorâneas, o social se esvai porque o usufruto vira de uma minoria privilegiada, o econômico se desequilibra porque essa minoria começa a lucrar através da exploração dos recursos naturais e cênicos, e o ambiental desaparece porque os interesses se voltam para o acúmulo financeiro, e ele geralmente pressiona os recursos, extraindo o máximo deles. Por isso, acho muito difícil reverter os quadros que já existem de degradação, e que provavelmente existirão com mais frequência a partir da PEC. Somente com gestão participativa, uso racional dos recursos e valorização dos saberes tradicionais será possível equilibrar conservação e desenvolvimento.
- Banhistas, turistas e governos, como cada um desses agentes pode atuar na preservação da faixa litorânea?
Turistas e banhistas devem respeitar as regras de uso das áreas naturais, evitar o descarte de lixo, não pisar sobre vegetação de restinga ou corais e valorizar o turismo de base comunitária. Já os governos têm o dever de fiscalizar, preservar e educar, além de fortalecer políticas públicas que incluam as comunidades locais na gestão do território. A criação e o fortalecimento de Unidades de Conservação de uso sustentável, o cumprimento da legislação ambiental e a promoção de planos de manejo costeiro são ações fundamentais.O Brasil, em termos de gestão costeira, tem uma situação bem diferente (e melhor) que em outros países, porque ainda tem várias áreas protegidas. É importante olhar para o que foi feito nessas áreas e replicar os bons exemplos e não repetir os maus exemplos. Temos instrumentos legais para garantir um bom manejo e preservação das áreas naturais. Ao contrário de muitos países, a legislação brasileira prevê Reservas Extrativistas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável, que contemplam atividades humanas em áreas de proteção, o que faz com que as comunidades tradicionais possam seguir com seus modos de vida e, ao mesmo tempo, garantir a preservação dessas áreas.
Realização da entrevista: Adriana Arruda e Gisele Bicaletto. Transcrição e edição: Michele Fernandes Gonçalves.