Puerpério, negligenciado na teoria e na prática

Pesquisa da UFSCar entrevistou mulheres e constatou necessidade de melhorias no atendimento pós-parto

Pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Gestão da Clínica (PPGGC) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) evidenciou diferentes pontos com necessidades de aprimoramento no atendimento a puérperas — mulheres no período seguinte ao parto — na rede pública de saúde. Segundo as pesquisadoras responsáveis, mais do que eventuais dificuldades na execução da política pública no município de São Carlos (SP), onde o estudo foi realizado, os achados refletem negligência que começa ainda na literatura sobre o tema.

“São poucas produções, menos ainda no campo da atenção básica”, explica Bruna Rego Rangel, terapeuta ocupacional atuante na Atenção Básica à Saúde (ABS) há 15 anos, que conduziu a pesquisa durante seu mestrado profissional no PPGGC. “Já nos manuais do Ministério da Saúde encontramos coisas super extensas dirigidas para o período gestacional e para a puericultura [cuidado com a saúde da criança] e com apenas uma página falando de puerpério, muitas vezes só definindo, e sempre em uma perspectiva muito voltada para aspectos biológicos e sinais de alarme: a mulher que tem um sangramento no período pós-parto, ou aquela em quem a equipe identifica que vem se instalando uma depressão pós-parto”, exemplifica.

O próprio conceito de puerpério é um tanto fluido, como deixa entrever o comentário da pesquisadora. De forma muito resumida, trata-se, justamente, do período seguinte ao parto. Os aspectos biológicos envolvem a volta do útero ao tamanho normal, a alteração na proporção de diferentes hormônios e consequentes mudanças emocionais, a interrupção de sangramentos no aparelho reprodutor e o preparo do corpo para a amamentação e a reestruturação das musculaturas pélvica, abdominal e perineal. A extensão desse período pode variar, embora os protocolos do Ministério da Saúde costumem estabelecer pouco mais de 40 dias. Também são variáveis, claro, os efeitos psicológicos e emocionais para cada mãe.

Foi no contexto de sua atuação na Atenção Básica em São Carlos que o acompanhamento ao puerpério começou a interessar Bruna Rangel. “Víamos muitas ações dirigidas, por exemplo, para o período gestacional, para acompanhamento dos aspectos reprodutivos, e depois que a mulher paria, ela sumia do serviço de saúde”, relata, evidenciando percepção que se encaixa perfeitamente nos objetivos do mestrado profissional do PPGGC, em que as pesquisas partem de questões identificadas na prática dos profissionais de saúde e visam melhorias para as políticas públicas e processos de trabalho no sistema de saúde, por exemplo.

Da identificação do problema — e em diálogo com Alana de Paiva Nogueira Fornereto, docente no Departamento de Terapia Ocupacional (DTO) da UFSCar e membro do PPGGC, que orientou a pesquisa — surge a ideia de investigar qualitativamente o que uma das Unidades Básicas de Saúde (UBS) onde a profissional trabalhava oferecia às puérperas, para que aquela e outras UBSs pudessem estruturar um cuidado mais adequado. Em busca de referências bibliográficas, pesquisadora e orientadora encontraram poucos estudos sobre o tema, e os que encontraram indicavam um cenário problemático. “A literatura aponta que, depois do parto, a mulher é negligenciada. Poucas são as pesquisas que evidenciam esse cuidado no centro, porque, historicamente, quem vai para o centro do cuidado é o bebê”, compartilha a orientadora. Ela ressalta a importância de que as ações voltadas para a saúde dos bebês estejam bem estruturadas, mas pondera: “Mortalidade infantil é um indicador importantíssimo para os países se declararem como desenvolvidos ou em desenvolvimento, mas negligenciar esse período da mulher, tanto física quanto emocionalmente, é, de fato, um erro, uma inadequação do cuidado oferecido”.

A partir de entrevistas com 10 puérperas, a pesquisa identificou temas que foram agrupados em três categorias. A primeira, “Itinerário/ percurso de cuidado da mulher no período gestacional e puerperal”, engloba assuntos como o acesso das mulheres à unidade de saúde e a outros serviços e, também, a comunicação entre esses serviços. Um dos problemas relatados foi desencontro de informações, como o prazo para a primeira consulta durante o puerpério. “Por exemplo, em relação à dificuldade de amamentação: você precisa pegar isso lá no começo, porque senão esse bebê vai desmamar. Faz muita diferença a mulher voltar no período de uma semana na Unidade, ao passo que, se ela voltar com 44 dias, esse bebê já desmamou, provavelmente”, ilustra Rangel.

A segunda categoria tem um nome mais autoexplicativo: “Vínculo com profissionais da UBS/de saúde durante a gestação e pós-parto”. Nesse âmbito, houve problemas de quebra de vínculo em situações como a identificação de um risco alto durante o acompanhamento pré-natal. Encaminhada para outro ambulatório, que ofereceria um cuidado mais adequado a esse risco, a mulher perdia as referências da unidade básica e não voltava durante o puerpério.

Por fim, a terceira categoria, “O caminho da idealização até a construção do meu jeito de maternar — cultura da parentalidade”, é uma articulação do puerpério com aspectos que influenciam a maternidade. “É toda a questão do aparato cultural, da rede de suporte”, explica a pesquisadora. “Como olhamos para a perspectiva de gênero, do quanto a mulher está sobrecarregada, de qual é o suporte que a parceria está oferecendo nesse momento e de que tudo isso vai interferir na forma como aquela mulher vai desempenhar o papel materno?”, indaga.

Para Alana Fornereto, um aspecto relevante do trabalho foi ressaltar a importância do acompanhamento pré-natal. “Olhando para os resultados, a pesquisa revela o quanto uma assistência de pré-natal adequada faz com que a mulher, no puerpério, retorne à Unidade e dê continuidade ao seu atendimento. Apesar do foco não ser o pré-natal, ele aparece como aspecto muito importante e necessário para que, no pós-parto, a mulher tenha vínculo suficiente para retornar, queira e confie nessa equipe para cuidar do seu bebê, para que ela exponha para a equipe caso esteja vivendo situações que são indesejáveis ou que são desconfortáveis para esse período em que ela está”, conclui.


A dissertação foi defendida em fevereiro de 2025. Em novembro de 2024, a pesquisa foi apresentada durante o Simpósio Internacional de Assistência ao Parto, realizado em São Paulo. Um resumo está disponível nos anais do simpósio e pode ser baixado neste link.